O crime da Piraquê

 

Se você é brasileiro, sobretudo carioca, e tem mais de 20 anos, certamente teve sua infância marcada pelas embalagens dos biscoitos Piraquê. Olhe bem para a imagem aí em cima, então, e se despeça: a empresa está substituindo o desenho clássico por outro, chupado da embalagem do produto para exportação, que você vê aqui à esquerda. A nova versão já está chegando às gôndolas dos supermercados e aos camelôs que vendem biscoito na Uruguaiana e na Cinelândia. O Queijinho, vulgo “Bolinha” (abaixo), que traz bolinhas de biscoito no fundo vermelho – e que talvez seja a embalagem mais bonita e sedutora da Piraquê – também vai mudar para o modelo ao lado.

Além de ser um projeto pior, mais poluído visualmente, que dispersa as informações em vez de concentrá-las, a nova embalagem da Piraquê joga fora a obra de uma grande artista brasileira e parte da nossa história visual. O que muito pouca gente sabe é que toda a identidade da Piraquê – embalagens dos biscoitos, massas, caminhão e logomarca – foi criada por Lygia Pape, uma das maiores artistas que este país já produziu.  A atuação de Lygia –  falecida em 2004 – no ramo da comunicação visual foi tão versátil quanto no das artes plásticas. Entre o fim dos anos 1950 e os aos 1970, ela criou numerosos cartazes e letreiros para filmes do Cinema Novo, caso de “Vidas secas”.  A partir de 1960, já com boa experiência como programadora visual, atuou na Piraquê.

Lygia criou o desenho de embalagens que se tornaram clássicas, como as dos biscoitos Cream Crackers, Maria e Maisena, e de quebra inventou um novo conceito para o empacotamento, depois copiado por outras indústrias do Brasil e do exterior. Até então, os biscoitos eram guardados em caixas ou latas padronizadas, fosse qual fosse o seu formato. A artista deenvolveu, no entanto, um método próprio de cortar e colar o papel de embalo, de modo que ele  passou a envolver os biscoitos sem gerar sobras dos lados, acima ou abaixo. Os biscoitos passaram a ser empilhados verticalmente e o papel plástico apenas se sobrepunha a esta pilha, criando a forma que as embalagens de Maria, Maisena e Cream Crackers têm até hoje, ou seja, a de sólidos espaciais (cilindro, ovalóide e paralelepípedo).

Fui curadora da exposição “Diálogo concreto – Design e construtivismo no Brasil”, na Caixa Cultural do Rio (2008) e de São Paulo (janeiro deste ano). Na mostra, relacionava o trabalho de Lygia e de outros artistas construtivos brasileiros, como Geraldo de Barros, Willys de Castro,  Waldemar  Cordeiro, Amilcar de Castro e Aluísio Carvão como designers. Minha tese  – e a de Felipe Scovino, curador-ajunto  – era a de que o design ajudou esta geração a cumprir a utopia de chegar até as massas, até o grosso da população.

Nas embalagens da Piraquê, Lygia aplicou todos os princípios de Gestalt, de geometria sensível e de “obra aberta” que nortearam as obras de arte do período. Os losangos sobrepostos nas embalagens dos Cream Crackers e a embalagem do Água e Sal, que você vê acima e ao lado, respectivamente, não me deixam mentir.  Olhe bem para a parturbação dos biscoitos desta última, espalhados sobre o fundo branco, e me diga:  não parece um “Metaesquema” de Hélio Oiticica?

A embalagem do Água (abaixo, à esquerda), em que o amarelo do biscoito torrado forma um contraste magnífico com o azul turquesa do fundo, já tinha sido alterada pela fábrica. No lugar desta obra-prima, hoje o Água vem numa embalagem preta com gotinhas de…  água (!!!), subestimando a inteligência de quem compra… e imitando a marca inglesa Carr´s, que tem as mais famosas bolachas de água e sal do mundo.

A do Goiabinha, até hoje parcialmente preservada da ignorância da Piraquê, é outraobra-prima: além de comunicar perfeitamente que se trata de um biscoito recheado, mostrado a foto com o risco da geleia de goiaba, empreende um outro princípio típico da pintura geométrica do período: o ritmo, ditado pela alternância matemática. No Goiabinha (à direita), a alternância 4X1 (quatro biscoitos recheados deitados, para um em pé) dá movimento e um ar lúdico à embalagem.

O desenho não é a única aproximação com a vanguarda do período. Ao transformar os biscoitos em sólidos geométricos e ser copiada no mundo inteiro, Lygia reproduziu no produto as formas de uma de suas obras mais famosas: em 1958, pouco antes do trabalho para a Piraquê, ela criou, em parceria com Reynaldo Jardim, o “Balé neoconcreto”, executado a partir do momento em que bailarinos, cobertos por sólidos espaciais, faziam com que estes se mexessem no espaço. Qualquer semalhança não é mera coincidência, como me disse Lygia Pape em depoimento gravado em sua casa, em 23 de fevereiro de 2003:

“Aquele era um momento em que experimentávamos muito em todas as áreas. Eu, particularmente, nunca gostei de ficar restrita a um suporte. Gostava de fazer com que eles conversassem e acabei levando a escultura para um trabalho como programadora visual. Sempre me diverti muito fazendo as embalagenspara a Piraquê. Adorava ir à gráfica, me despencava para Madureira para ver como estavam as provas de impressão. O formato das embalagens, que hoje aparece em qualquer biscoito, foi uma inovação para a época.

Depois outras indústrias, como a Aymoré e a Tostines, acabaram copiando a Piraquê. Os desenhos todos coerentes, que hoje foram muito deturpados, também foram uma novidade (…) Aquele vermelho aparecia para valer nas gôndolas dos supermercados. Dava para achar os produtos de longe”.

A Piraquê tem o direito de fazer o que quiser com sua identidade visual. Mas está cometendo um crime.

Fonte: Blog DANIELA NAME